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segunda-feira, 22 de abril de 2013

Sirius: o maior projeto da ciência brasileira


Abaixo, versões ampliadas da minha reportagem publicada hoje no Estadão, sobre o novo acelerador de partículas/fonte de luz síncrotron que está para ser construído em Campinas. É a minha matéria de “despedida” do caderno Vida, que a partir de amanhã deixará de ser publicado no Estadão como uma seção independente. Os temas da editoria (ciência, meio ambiente, educação e saúde) continuarão a ser cobertos pelo jornal, mas passarão a ser publicados dentro do caderno Metrópole.

Abraços a todos, e Vida longa ao bom jornalismo!

INFOGRÁFICO: William Mariotto/Estadão – Copyright (Versão interativa online)

Novo acelerador de partículas brasileiro começa a virar realidade em Campinas


O maior projeto da história da ciência brasileira está prestes a sair do papel. Nas próximas semanas deve ter início o trabalho de limpeza do terreno para construção do novo acelerador de partículas do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas. Com um anel de mais de 500 metros de circunferência, instalado num prédio de 250 metros de diâmetro – do tamanho de um estádio de futebol – a nova máquina será cinco vezes maior e muito mais avançada do que a atual, que será desmontada.

O custo total do projeto, batizado como Sirius (nome da estrela mais brilhante no céu), é estimado em R$ 650 milhões, com o primeiro feixe de luz previsto para 2016. Outro grande projeto federal, do Reator Multipropósito Brasileiro, a ser construído em Iperó (também no interior paulista), tem um orçamento maior, de R$ 850 milhões, mas sua missão principal será a produção de radioisótopos para uso médico e industrial, e não a produção de ciência. “Se você pensar numa infraestrutura dedicada exclusivamente à pesquisa, o Sirius certamente é o maior”, diz o físico Antonio José Roque da Silva, diretor do LNLS.

A expectativa na comunidade científica é igualmente grande. A luz síncrotron (uma radiação eletromagnética de amplo espectro, que abrange desde o infravermelho até os raios X) é usada em várias áreas de pesquisa, como física, química, biologia, geologia, nanotecnologia, engenharia de materiais e até paleontologia. O acelerador funciona como um gigantesco microscópio, que os cientistas utilizam para enxergar a estrutura atômica e molecular de diferentes materiais, iluminando-os com os diferentes tipos de radiação presentes na luz síncrotron. Pode ser uma rocha, uma proteína, uma amostra de solo, um dente de dinossauro, um cabo de aço usado em plataformas de petróleo, um fio de cabelo tratado com diferentes tipos de xampu, ou qualquer outra coisa que se queira conhecer nos mínimos detalhes.

“É o sonho de entender materiais, tanto do ponto de vista estrutural quanto funcional”, afirma Roque. Com a luz síncrotron, é possível saber, por exemplo, que tipos de átomos e moléculas fazem parte de um material, qual é a distância entre eles, como eles interagem entre si, quais são suas propriedades magnéticas e várias outras coisas. São “olhos microscópicos”, nas palavras do diretor científico do LNLS, o brasileiro Harry Westfahl.

A luz é gerada pela aceleração de elétrons, que viajam dentro de um anel de 518 metros de comprimento (165 metros de diâmetro) a uma velocidade muito próxima (99,999999%) da velocidade da luz, que é de aproximadamente 300 mil km/s. A diferença do Grande Colisor de Hádrons (LHC) na Europa e de outros colisores de partículas é que os elétrons, neste caso, não se chocam uns contra os outros em nenhum momento; viajam todos na mesma direção.

O acelerador brasileiro atual, chamado UVX, entrou em operação em 1997 e atende cerca de 1,4 mil pesquisadores por ano, com quase 3 mil trabalhos científicos publicados nos últimos 16 anos. A máquina tem 18 “linhas de luz”, que são as estações de trabalho nas quais os pesquisadores realizam seus experimentos com a luz que sai do anel. Elas funcionam simultaneamente, mas cada uma é otimizada para um tipo de pesquisa. “A luz que sai do anel contém todas as frequências de onda. É só nas linhas de luz que uma frequência específica é escolhida, por meio de filtros chamados monocromadores, de acordo com a necessidade do experimento que vai ser realizado”, explica Roque.

O Sirius começará a operar com 13 linhas de luz – suficientes, já, para atender toda a demanda atual do UVX –, mas poderá chegar a 40. A nova máquina não será apenas maior, mas também substancialmente melhor do que a atual em vários aspectos, produzindo uma luz muito mais brilhante, que permitirá ampliar consideravelmente o seu leque de aplicações.

Pioneirismo. Será a única máquina do tipo na América Latina e apenas a segunda no Hemisfério Sul, além de uma na Austrália. Mais do que isso, suas especificações técnicas deverão colocá-la na linha de frente das melhores fontes de luz síncrotron do mundo. “O Sirius será a máquina de maior brilho na sua classe de energia”, garante Roque.

A energia operacional do Sirius será de 3 bilhões de elétrons-volts (GeV), comparada ao bem mais modesto 1,37 bilhão de elétrons-volts do UVX. Isso, associado a uma série de outras especificações técnicas da máquina (como a configuração de magnetos ao redor do anel), permitirá produzir feixes de fótons (luz) muito mais brilhantes do que os atuais. Uma vantagem crucial é que será possível produzir um tipo de raio X mais energético, conhecido como “duro”, capaz de penetrar materiais mais espessos – algo que a máquina atual tem dificuldade de fazer. O limite de energia dos fótons nas linhas de luz do Sirius será de 250 mil elétrons-volts (KeV), comparado a 30 mil elétrons-volts no UVX, que é um limite inferior de energia dos raios X duros.

“O brilho do Sirius será maior do que o do UVX em todas as faixas de luz, mas nos raios X a diferença será gritante; bilhões de vezes maior”, afirma Roque.

Outro grande diferencial da máquina será a sua baixa emitância, uma característica relacionada ao tamanho da fonte e ao diâmetro do facho de luz gerado por ela, que será de 0,28 nanômetro-radiano (nm.rad), comparado a 100 nanômetros-radianos do UVX. É a menor emitância de qualquer fonte de luz síncrotron em operação ou sendo projetada no mundo, segundo Roque.

Para entender a diferença, de uma forma geral, pode-se pensar numa comparação entre o facho de luz produzido por uma lanterna e o feixe produzido por um apontador laser: a energia (quantidade de fótons) pode até ser a mesma, mas o brilho do laser é muito maior.

“Tem tudo para ser uma das duas melhores máquinas do planeta”, concorda o físico francês Yves Petroff, um dos maiores especialistas do mundo no assunto, ex-diretor do maior laboratório de luz síncrotron europeu (o ESRF, em Grenoble, na França) e ex-diretor científico do LNLS. “É o projeto mais moderno que se pode fazer com a tecnologia hoje.”

A expectativa, portanto, é que o Sirius atraia ainda mais pesquisadores estrangeiros para o Brasil; e não apenas da América Latina, mas também dos EUA e da Europa. “Os cientistas vão aonde houver os melhores equipamentos”, afirma Petroff. Ele cita o exemplo da moderna fonte de luz síncrotron de Taiwan, que atrai muitos pesquisadores dos Estados Unidos e da Europa.


Cerca de 20% dos usuários do UVX já são estrangeiros. “Bons equipamentos atraem bons pesquisadores”, diz Petroff, que contou ter vindo para o LNLS com a intenção de ficar seis meses, em 2009, mas acabou ficando três anos. “Vim porque tinha vários brasileiros no meu laboratório na França e porque gostei do que fizeram aqui no passado”, contou ele ao Estado em março, pouco antes de voltar para a França. 



“Dinheiro para o projeto está garantido”, diz secretário do MCTI


Os R$ 650 milhões necessários para colocar o Sirius de pé e funcionando ainda não estão garantidos legalmente, mas o secretário executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Luiz Elias, garante que eles aparecerão. “Estamos ainda finalizando algumas negociações, mas posso te dizer que os recursos estão assegurados”, disse ao Estado na quinta-feira. “Estamos no cronograma e não haverá atrasos. O projeto vai acontecer.”

Segundo ele, o ministério está negociando com vários parceiros para dividir os custos do projeto e ampliar o leque de usuários da máquina, tanto no setor público quanto no privado. Entre eles, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), a Petrobrás e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), além de outras fundações e empresas nacionais.

“O MCTI está assegurando isso como um projeto estratégico para o País”, afirma Elias. “Eventualmente, caso não se garanta alguma parte desses R$ 650 milhões, o ministério vai bancar (o que faltar).”

O projeto executivo, que custou R$ 6 milhões, deve ser finalizado em julho. O terreno onde o prédio será construído, de 150 mil m², que pertence ao banco Santander, está sendo desapropriado pelo governo do Estado (por R$ 23 milhões) e será cedido ao LNLS para o projeto. Faltam apenas algumas etapas burocráticas para a terraplanagem começar.

“A expectativa é que a desapropriação esteja concluída agora em maio. Assim que a nova escritura estiver lavrada, entramos com os tratores”, diz o diretor do LNLS, Antonio José Roque da Silva.

Confiança. Para o engenheiro e físico Ricardo Rodrigues, responsável pelo projeto dos aceleradores, o maior desafio de construir o Sirius será o “excesso de experiência” adquirido pela equipe nos últimos 30 anos, desde que ele, em 1984, recrutou três alunos de graduação para ir à Universidade Stanford com ele fazer um estágio de dois meses para desenvolver o projeto do acelerador atual. Uma iniciativa mais ousada ainda do que a atual, dada as limitações técnicas, industriais e orçamentárias da época.

Quando a primeira equipe do LNLS começou a ser contratada para tocar o projeto, em 1987, Rodrigues também fez questão de selecionar pessoas jovens, recém-formadas e “sem vícios”, que poderiam “ser enganadas” a acreditar que o projeto daria certo. Que foi o que aconteceu. “Sempre digo para o pessoal que começou comigo: ‘Isso só deu certo porque vocês foram idiotas o suficiente para acreditar que daria’”, conta Rodrigues – rindo e falando sério ao mesmo tempo. “Hoje já está todo mundo muito calejado, muito pessimista.”

Ainda assim, ele mantém o otimismo e espera colocar sua experiência “calejada” em prática de novo o mais rápido possível. “Se sair o dinheiro, garanto que entrego para as Olimpíadas.”

O plano é colocar o Sirius para funcionar e produzir o primeiro feixe de luz em 2016. Após essa inauguração, a máquina passará por um período de comissionamento, em que vários testes serão realizados para garantir que ela está funcionando da melhor forma possível. Isso pode demorar vários meses ou até um ano, o que é comum em casos de telescópios e outros equipamentos de grande porte e complexidade como esse. “Não é uma máquina que você liga na tomada e já funciona perfeitamente da primeira vez”, afirma Roque. “O plano é abrir para os usuários e começar a produzir ciência em 2017.”

Assim como a fonte de luz atual, o Sirius será construído majoritariamente (cerca de 70%) no Brasil – com a vantagem de que agora há várias empresas nacionais que poderão participar do projeto, enquanto que para o UVX quase tudo, incluindo os magnetos, precisou ser projetado e construído “do zero” dentro do próprio LNLS. Alguns componentes serão comprados fora, mas o projeto é 100% brasileiro. “Não somos participantes de um projeto internacional; o projeto é nosso”, afirma Roque.

“É um projeto tão bom quanto o da Suécia, só que mais simples e mais barato”, afirma Rodrigues, referindo-se a uma fonte de luz síncrotron semelhante que está sendo construída naquele país.

Rodrigues é responsável pelos aceleradores. Pelas linhas de luz, o responsável é o diretor científico do LNLS, Harry Westfahl, e pelo prédio que abrigará a máquina, o responsável é Oscar Vigna. Roberta Gomes faz a gestão do projeto (cronograma e financeiro) e Cleonice Ywamoto, a gestão administrativa. Todos sob a coordenação de Roque.

FOTO: O acelerador atual do LNLS, visto de cima. A parte central é o anel de aceleração de elétrons. As estruturas externas ao anel são as linhas de luz e estações de trabalho dos pesquisadores.
FOTO: Um pesquisador argentino observa sua amostra na
ponta de uma das linhas de luz do LNLS.
Crédito: Marcio Fernandes/Estadão – Copyright

Retorno às origens. De certa forma, o Sirius é um retorno às origens do UVX, que foi inicialmente projetado para operar com 3 GeV de energia, mas acabou sendo reduzido para 1,37 GeV, por falta de recursos.

“Desde o início a ideia era que o Brasil precisava de um síncrotron de 3 GeV”, conta o pesquisador argentino Aldo Craievich, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, outra figura importante na história do LNLS. “Fizemos uma máquina que funciona de maneira muito satisfatória há mais de 15 anos, mas chegou a hora de pensar em crescer de novo, não só na energia como no brilho. Finalmente o Brasil terá uma fonte de luz à altura da sexta economia do mundo.”

Segundo Roque, há mais de 60 fontes de luz síncrotron em operação no mundo, além de outras que estão em construção ou sendo projetadas, o que mostra a importância dessa tecnologia para o desenvolvimento científico e industrial de um país.

“Há cada vez mais máquinas, e mesmo assim o número de usuários não para de crescer, porque novas tecnologias continuam a aparecer”, diz o físico francês Yves Petroff, ex-diretor do Laboratório Europeu de Radiação Síncrotron (ESRF). Lá, segundo ele, o número de usuários cresceu de 4.500 por ano em 2002 para cerca de 7.000 por ano, em 2012.

Ciência. Umas das áreas da ciência que vem acrescentando muitos usuários às fontes de luz síncrotron, segundo Petroff, é a paleontologia. Com os avanços tecnológicos das linhas de luz, tornou-se possível fazer “tomografias” de altíssima definição de fósseis, sem precisar desmontá-los. Um bom exemplo é um trabalho publicado no início deste mês na revista Nature, em que pesquisadores utilizaram radiação síncrotron para visualizar a estrutura interna de ossos de embriões de dinossauro descobertos na China.

Uma aplicação mais clássica da luz síncrotron é na elucidação da estrutura molecular de proteínas, cujo conhecimento é essencial para o entendimento de suas propriedades e funções. Uma técnica que remete à histórica descoberta da estrutura de dupla hélice do DNA, por Watson e Crick, que completa 60 anos no final deste mês. A descoberta, em 1953, foi feita por meio de “fotos” da molécula de DNA feitas com raios X. Hoje, continua-se a fazer o mesmo com os raios X da luz síncrotron, só que com uma precisão muito maior.

Foto: Ricardo Rodrigues.


Fonte: Estadão